quinta-feira, 27 de setembro de 2012
De leitura
obrigatória (sobretudo pelas minhas colegas de Português)
Vou
deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar:« Ó João, onde
está a tua gramática? Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra,
enfiei-a no predicativo do sujeito.»
Texto
escrito por Teolinda Gersão ainda com a grafia
antiga
Redacção – Declaração de Amor à Língua Portuguesa
Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar,
mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um
massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que
não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em
casa”, ”em casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o
predicativo do sujeito.”O Quim está na retrete” : “na retrete” é o predicativo
do sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma
característica dela, mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus, a setôra
também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se
dane, com a retrete colada ao rabo.
No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo,
modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o
desgraçado de um “complemento oblíquo”. Julgávamos que era o simplex a
funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está. Simples, não é? Mas
qual, não há simplex nenhum, o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma
ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou
directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento, e
os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados, almoçar por exemplo
é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários
pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos
e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o
rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer
no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções
contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser:
Algumas árvores secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a
progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do
enunciado seguinte e assim sucessivamente.
No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era
uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de
polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.
No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa.
Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela” era ela, subentendido. Agora o
sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à
pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?
A professora também anda aflita. Pelos vistos no ano passado
ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a
autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado.
Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos
exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em
tudo excepto em português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho
de gramar até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho
demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de adjectivalização deverbal e
deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e
subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia,
holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e
interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto,
macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas
conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões
assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a
raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer. Dão um trabalhão e depois não
servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a
começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)
Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na
frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa.
Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por
exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou: a gente vamos à rua. Puseram-me
erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser
por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto
respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao
calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens,
ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos
chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar
ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas
chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que
estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou
ter zero.
E pronto, que se lixe, acabei a redacção - agora parece que
se escreve redação. O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem
culpa nenhuma, não nos quer impor a sua norma nem tem sentimentos de
superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A
culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se
escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos
puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem
nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E
é bem feita, para não sermos burros.
E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e
quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua gramática? Respondo: Está
nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito.
João Abelhudo, 8º ano, turma C
Teolinda Gersão, junho,
2012
Texto retirado do
Observatório de Língua Portuguesa
G.R.
sábado, 22 de setembro de 2012
Outono!
Qualquer coisa lilás,
Schumann em violino,
Ângelus tangido em
lentidões de sino...
Preguiçoso torpor de um
fim de sono.
Espelho de água quieta
dos canais!
Cá dentro, a idade,
restos de sonho e de
mocidade;
trechos dispersos
de velhas ambições falhas
na vida,
parcelas de antigas
ilusões
que ainda, a custo,
concentro
e invoco até agora!
Lá fora, a descida.
O crepúsculo inócuo
destes dias,
a tristeza das folhas
amarelas,
e a cantar sobre estas
ruínas frias,
a monótona toada de
meus versos.
Desce, Poeta!
A descida é suave...
Não te demanda rigidez
de músculos
e nem exige que teu
passo apresses...
A natureza é quieta,
da ingénua quietação de
um sonho de ave,
e há paina nos
crepúsculos...
No outono a luz é um
eterno poente,
que mais à calma que ao
rumor se ajeita;
Brilha, tão de manso e
calma,
que até parece
unicamente feita
para o estado d'Alma
de um convalescente
Mário Pederneiras
(Rio de Janeiro 1867-1915)
(Rio de Janeiro 1867-1915)
terça-feira, 18 de setembro de 2012
O menino que escrevia versos
- Ele escreve versos!
Apontou o filho, como se
entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das
lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.
- Há antecedentes na família?
- Desculpe, doutor?
O médico destrocou-se em
tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de
nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores,
interpretava chaparias. Tratava-a bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais
requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias.
- Serafina, você hoje
cheira a óleo Castrol.
Ela hoje até se comove com
a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar?
Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não
fora senão período de rodagem. O filho fora confecionado nesses namoros de unha
suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.
Tudo corria sem mais, a
oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a
aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho
confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.
- São meus versos, sim.
O pai logo sentenciaria:
havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais,
perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no
esfrega-esfrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda,
escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador
entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?
Dona Serafina defendeu o
filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.
- O médico que faça
revisão geral, parte mecânica, parte elétrica.
Queria tudo. Que se
afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível
do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O
que urgiu era pôr cobro àquela vergonha familiar.
Olhos baixos, o médico
escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para
poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
- Dói-te alguma coisa?
- Dói-me a vida, doutor.
O doutor suspendeu a
escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o
momento: Está a ver doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a
enfrentar o miúdo:
- E o que fazes quando te
assaltam essas dores?
- O que melhor sei fazer,
excelência.
- E o que é?
- É sonhar.
Serafina voltou à carga e
desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe disse sobre
os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o
sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio do sonho. E riu-se,
acarinhando o braço da mãe.
O médico estranhou o
miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi se
anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há,
só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença.
Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:
- Não tenho tempo, moço,
isto aqui não é nenhuma clínica psiquiátrica.
A mãe, em desespero, pediu
clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos
versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o
médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima
semana. E trouxesse o paciente.
Na semana seguinte, foram
os últimos a ser atendidos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria,
por acaso, mais versos? O menino não entendeu.
- Não continuas a
escrever?
- Isto que faço não é
escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida - disse,
apontando um novo caderninho - quase a meio.
O médico chamou a mãe, à
parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de
internamento urgente.
- Não temos dinheiro -
fungou a mãe entre soluços.
- Não importa - respondeu
o doutor.
Que ele mesmo assumiria as
despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a
devido tratamento. E assim se procedeu.
Hoje quem visita o
consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num
recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz
pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio
coração. E o médico, abreviando silêncios:
- Não pare, meu filho,
continue lendo...
conto de Mia Couto
domingo, 16 de setembro de 2012
Os professores da minha escola
A professora de Matemática,
com
suas contas complicadas,
falando em equações,
no
Teorema de Pitágoras.
A professora de Português,
com
seu modo indicativo,
falando em advérbios,
interjeições, substantivos.
A professora de Geografia,
com
seus complexos regionais,
falando em sítios urbanos,
em
pontos cardeais.
A professora de Ciências,
com
seus ensinamentos ecológicos,
falando em evolução,
em
estudos biológicos.
A professora de História,
com
seus povos bizantinos,
falando na Idade Média,
no
Imperador Constantino.
A professora de Inglês,
com
seus don't, do e does,
falando em personal pronouns,
na
diferença entre go e goes.
A professora de Artes,
com
suas obras e seus artistas,
falando em artes óticas,
em
pintores surrealistas.
O professor de Educação Física,
com
suas regras de voleibol,
falando sobre basquete,
em
times de futebol.
Os professores da minha escola,
com
suas matérias que às vezes não entendemos,
falando em todas as coisas,
que
aos poucos vamos aprendendo.
Clarice Pacheco
Cortar o
tempo
Quem teve a ideia de cortar o
tempo em fatias,
A que se deu o nome de ano,
Foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança,
fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser
humano se cansar e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação e tudo começa
outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui pra diante
vai ser diferente
Carlos Drummond de Andrade
BENDITAS
SEJAM AS HISTÓRIAS
Benditas sejam as histórias do princípio de tudo
porque são limpas e são
puras como mel
e como a água que a
palavra perfeita converte
em leite ou em espuma na
boca atónica dos crentes.
Benditas sejam, para
sempre, as histórias
que me fizeram acreditar
na bondade dos homens
antes que a vida me
tivesse conduzido
ao mais absoluto
desengano.
Eu já tive a idade das
histórias que ouvia contar,
das que viviam fora dos
livros,
das que corporizavam no
ar os duendes e as fadas,
das que me faziam
acreditar que podia ser eterno
como os príncipes
entronizados no cume das lendas,
belos como cascatas
refrescando a erva.
Benditas sejam, para
sempre, as histórias,
mesmo as que ninguém me
chegou a contar,
mas que eu inventei com o
fascinado engenho
de uma infância debruada
a ouro nos esconderijos
da fala que silêncio
algum ousou vencer.
José Jorge Letria, in
Produto Interno Lírico
POESIA VISUAL
DOIS DEDOS DE CONVERSA
quarta-feira, 5 de setembro de 2012
Morre lentamente quem não viaja,
Quem não lê,
Quem não ouve música,
Quem destrói o seu amor-próprio,
Quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente quem se transforma escravo do hábito,
Repetindo todos os dias o mesmo trajeto,Quem não lê,
Quem não ouve música,
Quem destrói o seu amor-próprio,
Quem não se deixa ajudar.
Morre lentamente quem se transforma escravo do hábito,
Quem não muda as marcas no supermercado,
Não arrisca vestir uma cor nova,
Não conversa com quem não conhece.
(...)
PABLO NERUDA
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