Por que razão não voltaste a telefonar e me deixas assim, suspensa, à
tua espera? Nem para o emprego
(conheces o número do emprego)
nem para casa, sabes que estou sozinha, não recebo ninguém, uma amiga
de tempos a tempos que não impede que ligues, quando muito saio uma hora ou
duas ao sábado para visitar a minha mãe, nunca vou ao cinema, nunca janto fora,
como qualquer coisa por aqui, leio uma revista
(nem leio uma revista, folheio, vejo as fotografias e é tudo, ou antes
nem vejo as fotografias, fico a pensar em ti)
poiso a revista, abro a televisão, fecho a televisão, vou à janela
espreitar a rua, penso que é o teu carro a estacionar lá em baixo e nunca é o
teu carro a estacionar lá em baixo, nunca és tu a fechar a porta com o comando
eléctrico e as luzes do automóvel a acenderem-se e a apagarem-se, nunca são os
teus dois toques de campainha, nunca é o teu aceno no capacho nem o embrulhinho
de biscoitos de que não gosto e me forço a comer e a fazer dieta no dia
seguinte dado que os biscoitos engordam, nunca é a tua mão no meu ombro
- A minha menina
o teu perfume, a tua maneira de acomodar o rabo no sofá, a tua aliança
que apesar de normal me parece sempre enorme e me dói, não tenho coragem de te
confessar que me dói mas dói, conforme me doem as tuas mentiras
- Há anos que não há nada entre nós
que me obrigam a perguntar, calada, se entre nós há alguma coisa,
vinhas uma ou duas ocasiões por mês, não ficavas nunca e, no entanto,
bastava-me, não peço muito à vida, não peço seja o que for à vida,
acostumei-me, não tenho motivos para lamentar-me, o que ganho chega, graças a
Deus a saúde não me tem faltado apesar do problema da coluna, tomo as injeções
no posto médico e as coisas vão andando, o creme que me receitaram na farmácia
ajuda, o apartamento claro que não é grande mas para mim sozinha chega e sobra,
não existe uma prestação por pagar, arranjo sempre um dinheirito ao fim do mês,
volta e meia compro um vestido, uns sapatos, os vizinhos não fazem barulho, há
agora um bebé no primeiro direito mas sossegado, tenho saudades tuas, Ernesto,
mesmo com a aliança tenho saudades tuas, no outro dia vi-te com a tua mulher no
supermercado e apesar disso consegui fazer as compras todas, uma pessoa da
minha idade, talvez maior, mais bonita, achei esquisito não haver nada entre
vocês há anos e embora ache esquisito acredito em ti
- És a minha menina
preocupo-me com o teu coração sempre que levas a mão ao peito, tiras
um comprimido de uma caixinha, me pedes água, me ofereces um sorriso pobre
- Ferrugem na máquina
e a seguir melhoras, suponho que o comprimido limpa a ferrugem toda,
aflijo-me com a tua palidez, com o dedo a medir a pulsação julgando que não
noto, como podia não notar, tudo o que te aflige assusta-me, não te aborreço
- Que ferrugem na máquina?
para que não te sintas velho ou inútil, suponho que tens sessenta anos
e portanto uma vida inteira à frente, o emprego deve cansar-te, as maçadas,
quando menos se espera descais-te num suspiro
- A minha filha não há maneira de ter juízo
e ignoro o que, na tua ideia, não ter juízo seja, fico calada, é
evidente, trago-te aquele licor fraquinho que tu gostas, faço-te festas no
pescoço, a medo, com receio de maçar-te, não reclamo seja o que for, não
mendigo seja o que for, só desejava que de tempos a tempos te lembrasses de
mim, há sete meses que nem uma palavra, inquieta-me que a ferrugem haja
aumentado e estejas na sala de espera de uma consulta, emagrecido, pálido, digo
- Ernesto
em voz alta como se dizer
- Ernesto
te melhorasse, comove-me que andes a perder cabelo, que o nó da tua
gravata um bocadinho torto, que uma tremura no queixo, pode ser que mais de
sessenta anos, sessenta e cinco, setenta e apesar de setenta a vida inteira à
tua frente à mesma, o que eu não dava para te ter aqui um momento, um
minutinho, um instante, na tua última visita trazias dentes novos que te
tornavam mais vigoroso apesar de mal pegados à gengiva e a incomodarem-te que
se percebia por estares constantemente a empurrá-los com a língua, oxalá
encontres um pó que segure a placa, a minha mãe usa um pó que segura lindamente
a placa, repara-se que placa mas firme como uma lapa no queixo, mastiga de
tudo, não te agradava ficar um momento comigo no sofá, não te anima o
licorzinho, a quantidade de vezes que digo em voz alta, aqui em casa
- Ernesto
na esperança de um sorriso teu, mesmo pobre, mesmo aflito, na esperança
de
- A minha menina
e eu, sem coragem de responder
- O meu rapaz
digo
- O meu rapaz
para dentro, não me sai, não consigo, faço tanta cerimónia, não me
atrevo a procurar-te, a tentar saber de ti, a incomodar, a protestar
-Que aliança tão grande, Ernesto
eu que não casei nunca, uns namoricos, umas cartas cerimoniosas, um
domingo, durante uma excursão no norte, um
(desculpa)
beijo, estava guardada para ti desde sempre, guardada para ti,
Ernesto, seria incapaz de me imaginar com outro homem, continuo à tua espera,
sabias, que arrumes o carro, subas, me garantas
- A minha menina
enquanto verificas se trazes a caixinha dos comprimidos no bolso, pode
parecer-te parvo mas adorava acariciar a caixinha, não te rias de mim, ou antes
não levantes na minha direção o teu sorriso pobre e a tua desculpa
- A ferrugem
mesmo que fosses um parafuso todo escuro adorava-te, guardada para ti
desde sempre, a comer qualquer coisa sozinha, a folhear uma revista, a fechar a
televisão, a deitar-me, guardada para ti, Ernesto, podes ter a certeza, desde o
princípio do mundo.
António Lobo Antunes