terça-feira, 17 de abril de 2012






Poesia e Poetar (há as duas palavras) são duas coisas. Nós queremos apenas uma: a primeira.

Poesia é criação.

Poetar é fazer versos.


Almada Negreiros, Obras Completas




RAPARIGA DESCALÇA

Chove. Uma rapariga desce a rua.

Os seus pés descalços são formosos.

São formosos e leves: o corpo alto

parte dali, e nunca se desprende.



A chuva em abril tem o sabor do sol:

cada gota recente canta na folhagem,

O dia é um jogo inocente de luzes,

de crianças ou beijos, de fragatas.



Uma gaivota passa nos meus olhos.

E a rapariga - os seus formosos pés -

canta, corre, voa, é brisa, ao ver

o mar tão próximo e tão branco.


Eugénio de Andrade, Poesia, Fundação Eugénio de Andrade, 2000







ESCREVE-ME

Escreve-me! Ainda que seja só

 Uma palavra, uma palavra apenas,

 Suave como o teu nome e casta

 Como um perfume casto d’açucenas!



Escreve-me! Há tanto, há tanto tempo

 Que te não vejo, amor! Meu coração

 Morreu já, e no mundo aos pobres mortos

 Ninguém nega uma frase d’oração!



“Amo-te!” Cinco letras pequeninas,

 Folhas leves e tenras de boninas,

 Um poema d’amor e felicidade!



Não queres mandar-me esta palavra apenas?

 Olha, manda então… brandas… serenas…

 Cinco pétalas roxas de saudade.
Florbela Espanca, O Livro D’Ele




Estamos a aguardar a estreia do filme, no Algarve, sobre Florbela Espanca. Até lá, vamos saber um pouco sobre a sua vida.

Vila Viçosa, final do ano de 1894, noite de sete para oito de Dezembro.

          Antónia da Conceição Lobo sente as dores do parto. Nasce uma menina. Não vem ao encontro das alegrias da família. Não há assim lugar ao habitual regozijo de tais momentos. Não parece ter sido desejada por qualquer das partes. É baptizada como filha de pai incógnito. Avôs e avós também incógnitos. É-lhe posto o nome de Flor Bela de Alma da Conceição. Na literatura portuguesa será chamada Florbela Espanca. Apelido que receberá do pai, João Maria Espanca, já então levantado o véu encobridor. Curiosamente, o padre que a baptiza e a madrinha usam o mesmo apelido.

A mãe morre algum tempo depois.

Tem infância sem falta de carinhos e a sua subsistência não será ensombrada por insuficiências que atingem muitas das crianças que nascem em circunstâncias semelhantes.

O pai não a deixará desprovida de amparo. Ela própria assim o diz quando aos dez anos, em poema de parabéns de aniversário ao "querido papá da sua alma" escreve que a "mamã" cuida dela e do mano "mas se tu morreres/ somos três desgraçados" .

Será acarinhada pelas duas madrastas, como revelará na sua própria correspondência.

Ingressa no liceu de Évora. Num tempo em que poucas raparigas frequentam estudos, e bonita como é, apesar de umas tantas vezes afirmar o contrário, põe à roda a cabeça dos colegas.

Não são aqueles os primeiros versos. Antes já os escrevera com erros de ortografia. Naturalmente infantis, mas avançados em relação à idade. De algum modo, prenunciam o que virá depois.

Esta precocidade contrasta com um quê de desajustamento futuro, quando a sua escrita divergirá dos conceitos de poesia dos grupos do Orfeu, Presença e outras tendências do designado "Modernismo", e que emergem como as grandes referências literárias da época. Das quais Florbela parecerá arredada.

Inicialmente sem dificuldades económicas, como deixa perceber. Explicadora, trabalhará ensinando francês, inglês e outras matérias. Mais tarde, com vinte dois anos, irá cursar Direito na Universidade de Lisboa.

Publica vários poemas em jornais e revistas não propriamente dedicados à poesia, como seja Noticias de Évora e O Século ou de circulação local.

Edita os seus primeiros livros, Livro de mágoas em 1919, e em 1923 Livro de Soror Saudade, onde incluirá grande parte da produção anterior.

Refere o seu Alentejo e os locais ligados às suas origens, e exalta a Pátria em alguns poemas. Mas a sua escrita situar-se-á sobretudo no campo da paixão humana.

Contrai matrimónio por três vezes. Do primeiro marido, Alberto Moutinho, usa o apelido em alguns escritos, nomeadamente correspondência. Do terceiro marido, Mário Lage, juntará o apelido à assinatura usual, nas traduções que efetuará. Do segundo, António Guimarães, não parece haver reminiscências explícitas nos escritos de Florbela, que lhe terá dedicado obra que publica como Livro de Soror Saudade, título diferente do projetado e esquecendo a dedicatória.

In Vidas Lusófonas

G.R.


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