Poesia e Poetar (há
as duas palavras) são duas coisas. Nós queremos apenas uma: a primeira.
Poesia é criação.
Poetar é fazer
versos.
Almada Negreiros, Obras Completas
RAPARIGA DESCALÇA
Chove. Uma rapariga desce a rua.
Os seus pés descalços são formosos.
São formosos e leves: o corpo alto
parte dali, e nunca se desprende.
A chuva em abril tem o sabor do sol:
cada gota recente canta na folhagem,
O dia é um jogo inocente de luzes,
de crianças ou beijos, de fragatas.
Uma gaivota passa nos meus olhos.
E a rapariga - os seus formosos pés -
canta, corre, voa, é brisa, ao ver
o mar tão próximo e tão branco.
Eugénio de Andrade, Poesia, Fundação Eugénio de Andrade, 2000
ESCREVE-ME
Escreve-me! Ainda que seja só
Uma palavra, uma palavra
apenas,
Suave como o teu nome e
casta
Como um perfume casto
d’açucenas!
Escreve-me! Há tanto, há tanto tempo
Que te não vejo, amor! Meu
coração
Morreu já, e no mundo aos
pobres mortos
Ninguém nega uma frase
d’oração!
“Amo-te!” Cinco letras pequeninas,
Folhas leves e tenras de
boninas,
Um poema d’amor e
felicidade!
Não queres mandar-me esta palavra apenas?
Olha, manda então…
brandas… serenas…
Cinco pétalas roxas de
saudade.
Florbela Espanca, O Livro
D’Ele
Estamos a aguardar a estreia do filme, no Algarve, sobre Florbela Espanca. Até lá, vamos saber um pouco
sobre a sua vida.
Vila
Viçosa, final do ano de 1894, noite de sete para oito de Dezembro.
Antónia da Conceição Lobo sente as
dores do parto. Nasce uma menina. Não vem ao encontro das alegrias da família.
Não há assim lugar ao habitual regozijo de tais momentos. Não parece ter sido
desejada por qualquer das partes. É baptizada como filha de pai incógnito. Avôs
e avós também incógnitos. É-lhe posto o nome de Flor Bela de Alma da Conceição.
Na literatura portuguesa será chamada Florbela Espanca. Apelido que receberá do
pai, João Maria Espanca, já então levantado o véu encobridor. Curiosamente, o
padre que a baptiza e a madrinha usam o mesmo apelido.
A mãe
morre algum tempo depois.
Tem
infância sem falta de carinhos e a sua subsistência não será ensombrada por
insuficiências que atingem muitas das crianças que nascem em circunstâncias
semelhantes.
O pai não
a deixará desprovida de amparo. Ela própria assim o diz quando aos dez anos, em
poema de parabéns de aniversário ao "querido papá da sua alma"
escreve que a "mamã" cuida dela e do mano "mas se tu morreres/
somos três desgraçados" .
Será
acarinhada pelas duas madrastas, como revelará na sua própria correspondência.
Ingressa
no liceu de Évora. Num tempo em que poucas raparigas frequentam estudos, e
bonita como é, apesar de umas tantas vezes afirmar o contrário, põe à roda a
cabeça dos colegas.
Não são
aqueles os primeiros versos. Antes já os escrevera com erros de ortografia.
Naturalmente infantis, mas avançados em relação à idade. De algum modo,
prenunciam o que virá depois.
Esta
precocidade contrasta com um quê de desajustamento futuro, quando a sua escrita
divergirá dos conceitos de poesia dos grupos do Orfeu, Presença e outras
tendências do designado "Modernismo", e que emergem como as grandes
referências literárias da época. Das quais Florbela parecerá arredada.
Inicialmente
sem dificuldades económicas, como deixa perceber. Explicadora, trabalhará
ensinando francês, inglês e outras matérias. Mais tarde, com vinte dois anos,
irá cursar Direito na Universidade de Lisboa.
Publica
vários poemas em jornais e revistas não propriamente dedicados à poesia, como
seja Noticias de Évora e O Século ou de circulação local.
Edita os
seus primeiros livros, Livro de mágoas em 1919, e em 1923 Livro de Soror
Saudade, onde incluirá grande parte da produção anterior.
Refere o
seu Alentejo e os locais ligados às suas origens, e exalta a Pátria em alguns
poemas. Mas a sua escrita situar-se-á sobretudo no campo da paixão humana.
Contrai
matrimónio por três vezes. Do primeiro marido, Alberto Moutinho, usa o apelido
em alguns escritos, nomeadamente correspondência. Do terceiro marido, Mário
Lage, juntará o apelido à assinatura usual, nas traduções que efetuará. Do
segundo, António Guimarães, não parece haver reminiscências explícitas nos
escritos de Florbela, que lhe terá dedicado obra que publica como Livro de
Soror Saudade, título diferente do projetado e esquecendo a dedicatória.
In Vidas Lusófonas
G.R.
Sem comentários:
Enviar um comentário