Poema lido por FILIPA
LEAL, no dia 24.3.2013, no Centro Cultural de Belém. A mãe morreu no dia 21 de
março, dia mundial da poesia. E ela escreveu este poema…lindíssimo.
“E
as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.”
Herberto
Helder
OS MEUS PRIMEIROS PASSOS EM VOLTA
Amo devagar o
poeta que tem um cão que tinha um marinheiro.
Pergunto-me se
o poeta terá cinco dedos de cada lado, como eu.
Pergunto-me se o cão algum dia se fez ao mar, depois
da morte do marinheiro.
Pergunto-me se
envelhecer é sair de casa com os olhos contentes de pão e açúcar
e chegar atrasado, anos depois, ao fim. O luto,
Herberto.
(Não o luto do cão – o meu.)
O luto em Lisboa ou no Porto, o luto em Israel ou na
Palestina,
o luto é igual,
deve ser igual, na tua rua e na minha.
Ouve, Herberto: era Dia Mundial da Poesia. Eu tinha
ido ao cabeleireiro.
Vesti-me de
preto e calcei aqueles sapatos de tacão alto. Eu ia de cabelo esticado.
Eu ia maquilhada e feliz. Ia de preto mas ia-me
esquecendo da morte.
(Aos 33 anos, eu ia imortal.)
Quando o telefone
tocou, como nos filmes, disseram-me que era urgente.
Estava a vinte minutos de subir ao palco com o meu
poema, mas era urgente.
Estava a vinte minutos do fim da minha juventude,
porque era urgente.
O luto, Herberto.
Tão urgente que
só pode ser mentira, ou ficção, ou poesia.
Todos tão vivos
naquele dia. E ninguém há-de morrer se levamos sapatos de tacão.
Não é possível
tanta inabilidade para a corrida.
Não é possível tanta falta de Mãe.
Se eu quisesse, Herberto, enlouquecia.
Por isso hoje venho apenas perguntar-te se o teu cão
se fez ao mar.
Diz-me que ele
se fez ao mar.
FILIPA LEAL
(O poema tem passagens de poemas de Herberto Helder,
dos livros Os Passos em Volta (“Cães, Marinheiros”; “Estilo”) e Ofício Cantante
– Poesia Completa (“Aos amigos”, de «Lugar»; “Fonte”, de «A Colher na Boca»).