domingo, 7 de abril de 2013

 
 
 
 Poema lido por FILIPA LEAL, no dia 24.3.2013, no Centro Cultural de Belém. A mãe morreu no dia 21 de março, dia mundial da poesia. E ela escreveu este poema…lindíssimo.
 
“E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.”
                                  Herberto Helder
 
OS MEUS PRIMEIROS PASSOS EM VOLTA
 
 Amo devagar o poeta que tem um cão que tinha um marinheiro.
 Pergunto-me se o poeta terá cinco dedos de cada lado, como eu.
Pergunto-me se o cão algum dia se fez ao mar, depois da morte do marinheiro.
 Pergunto-me se envelhecer é sair de casa com os olhos contentes de pão e açúcar
e chegar atrasado, anos depois, ao fim. O luto, Herberto.
(Não o luto do cão – o meu.)
O luto em Lisboa ou no Porto, o luto em Israel ou na Palestina,
 o luto é igual, deve ser igual, na tua rua e na minha.
Ouve, Herberto: era Dia Mundial da Poesia. Eu tinha ido ao cabeleireiro.
 Vesti-me de preto e calcei aqueles sapatos de tacão alto. Eu ia de cabelo esticado.
Eu ia maquilhada e feliz. Ia de preto mas ia-me esquecendo da morte.
(Aos 33 anos, eu ia imortal.)
 Quando o telefone tocou, como nos filmes, disseram-me que era urgente.
Estava a vinte minutos de subir ao palco com o meu poema, mas era urgente.
Estava a vinte minutos do fim da minha juventude, porque era urgente.
O luto, Herberto.
 Tão urgente que só pode ser mentira, ou ficção, ou poesia.
 Todos tão vivos naquele dia. E ninguém há-de morrer se levamos sapatos de tacão.
 Não é possível tanta inabilidade para a corrida.
Não é possível tanta falta de Mãe.
 
Se eu quisesse, Herberto, enlouquecia.
 
Por isso hoje venho apenas perguntar-te se o teu cão se fez ao mar.
 Diz-me que ele se fez ao mar.



FILIPA LEAL

(O poema tem passagens de poemas de Herberto Helder, dos livros Os Passos em Volta (“Cães, Marinheiros”; “Estilo”) e Ofício Cantante – Poesia Completa (“Aos amigos”, de «Lugar»; “Fonte”, de «A Colher na Boca»).
 


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