segunda-feira, 14 de novembro de 2011


O mar foi ontem o que o idioma pode ser hoje, basta vencer alguns Adamastores.
                                             Mia Couto

O DESACORDO DO ACORDO
Ortografia tem origem no grego (ortho-grafos) e significa a forma correta de escrever.
Sabemos que a língua é um fenómeno dinâmico e evolui naturalmente ao longo dos tempos. Nem sempre é fácil ceder à mudança. O Acordo Ortográfico tem provocado alguns desacordos que despertam criatividades talvez adormecidas. A discórdia, geralmente, é uma consequência das mudanças para as quais as pessoas ainda não estão preparadas. Se essas discordâncias nos provocarem um sorriso nos lábios, serão uma forma saudável de refletirmos sobre o tema já poetizado há tanto tempo por Camões nas palavras:
Mudam-se os tempos
Mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
(…)
O texto que se segue é um exemplo do direito à discordância. Esperemos que a democracia não se transforme num mito ou numa miragem longínqua. Passemos a ler, então, esta espécie de Manifesto Anti-Dantas invertido, um inconformado que reconhece que tem que se conformar.
                                                 Guilhermina Reis
Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa. Custa-me despedir-me daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com o tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.
Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como neorrealismo ou autorretrato. Caíram hifenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de facto, para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em ‘há de’ há um divórcio, não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem. Em veem e leem, por uma questão de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.
As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar.
De Manuel Halpern, jornalista e crítico do Jornal das Letras, Artes e Ideias


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